quarta-feira, 2 de março de 2011

Manifesto


É com uma mistura de tristeza e indignação que escrevo esse breve comentário sobre o fato ocorrido no dia 25 de fevereiro de 2011, em Porto Alegre. Um grupo de 100 ciclistas manifestava-se sobre a utilização da bicicleta como solução viável para diminuir o congestionamento das cidades e reduzir o impacto ao meio ambiente (movimento conhecido como MASSA CRÍTICA) quando foi surpreendido por um ato de covardia do Sr. Ricardo José Neis, 47 anos, bancário, que utilizou seu automóvel Golf como arma, passando por cima dos ciclistas, pelas suas costas, em alta velocidade.

Cenas do Movimento Massa Crítica antes, durante e depois da tentativa de homicídio:
http://www.youtube.com/watch?v=8Z2V4BNcLgo&feature=related

Graças à grande manifestação de apoio dos internautas de diversas redes sociais (YouTube, Twitter, Facebook, Orkut, entre outros), este CRIME ganhou espaço nas mídias convencionais. Organizações ligadas ao ciclismo no Brasil e no mundo também se pronunciaram rapidamente sobre o ocorrido e promoveram novas manifestações.

Tweets no Twitter (hagtash: #naofoiacidente)
http://twitter.com/#!/search/%23naofoiacidente
Alexandre Garcia comenta o atropelamento
http://www.youtube.com/watch?v=mQbeWY_2rLA

Em sua defesa, o AGRESSOR acusa os ciclistas de tentativa de linchamento e depredação do seu veículo: "Durante todo o caminho, eles foram batendo no carro. A partir de um momento, vi uma brecha e passei um pouco de alguns deles [ultrapassou], eles se enfureceram e começaram a agredir violentamente o carro. Quebraram o espelho, deram vários socos, jogaram a bicicleta por cima (...) naquela situação, eu me desesperei e tinha que sair dali o mais rapidamente possível para evitar o linchamento".

Declaração do Agressor:
http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/882332-atropelador-de-ciclistas-diz-que-acelerou-para-evitar-linchamento.shtml

Interessante notar que, nas cenas gravadas por câmeras digitais e celulares dos participantes do evento, o carro que atropela os ciclistas está em perfeitas condições, com os dois espelhos e nenhum vidro quebrado. O delegado responsável considerou a explicação insuficiente para a atitude e classificou como "motivo fútil" o motorista ter atropelado os ciclistas. “Outro agravante citado pelo delegado foi o fato de as pessoas terem sido colhidas pelo Golf quando estavam de costas - sem chance de defesa.”

Sobre as acusações e pedido de prisão preventiva:
http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/882727-delegado-diz-que-carro-foi-usado-como-arma-contra-ciclistas.shtml

Talvez por estratégia de defesa, ou por real necessidade, o CRIMINOSO está internado em uma clínica psiquiátrica, mas teve a sua prisão preventiva decretada.

Sobre a internação espontânea:
http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/882971-atropelador-de-ciclistas-e-internado-em-clinica-psiquiatrica.shtml

Depois de tudo isso apresentado, o que me resta manifestar? Não sei ao certo, mas acho que ainda não fiz o suficiente para ajudar que uma coisa dessas nunca mais aconteça. Minhas vontades são muitas: por minha bicicleta na rua, colocar no meu carro a imagem do movimento, levar essa discussão aos meus amigos, consultar os jornais virtuais a cada 15min a procura de mais informações, entre muitas outras coisas. Por hora, estava lendo um texto e acho que posso fazer uma associação. Talvez não seja a melhor, mas foi aquela que me fez pensar.

“O filósofo existencial Jean-Paulo Sartre (1905-1980) é conhecido por sua visão cínica dos relacionamentos interpessoais, como manifesta em sua filosofia e em suas obras literárias. Famoso por sua análise da natureza opressiva do “olhar” e pela declaração “o Inferno são os outros”, Sartre ressalta a ansiedade que os nossos relacionamentos com as pessoas produzem e o modo como esses relacionamentos podem inibir a autonomia pessoal. (...) A primeira razão pela qual as pessoas despertam em nós sentimentos negativos é que elas representam obstáculos potenciais à nossa liberdade. (...) Como Sartre explica, o surgimento do outro não vem só como uma surpresa, mas também como uma ameaça. (...) Outra razão, segundo Sartre, pela qual os outros despertam nossos sentimentos negativos tem a ver com o fato de nos converterem em objetos. (...) Enquanto tentamos pensar em nós mesmos como agentes e não objetos, os outros são um doloroso lembrete que somos seres físicos, corpos com propriedades. (...) Convertemos as pessoas em objetos porque não experienciamos (nem poderíamos) sua mente, mas só conseguimos interagir com elas, basicamente, como objetos. Ser um objeto é perturbador, porque, quando uma pessoa sabe que é uma coisa concreta, sua liberdade de ser ou fazer é limitada; e uma característica da consciência humana é resistir a qualquer tipo de confinamento não escolhido. (...) A última razão de Sartre que gera sentimentos de antagonismo é que os outros roubam do indivíduo seu senso de primazia e controle. Como todos sabemos, as outras pessoas não são necessariamente o que queremos. (...) Com o uso de uma metáfora médica, ele (Sartre) afirma que a presença dos outros cria uma ‘hemorragia’ no mundo do indivíduo, uma fenda que faz com que seu mundo se ‘desintegre’.”

Imagino o Sr. Ricardo José Reis dentro do seu carro, surpreendido pela manifestação dos ciclistas à sua frente. Vejo ele se irritando, pensando em como o seu direito de ir e vir foi seqüestrado por aquelas pessoas (a primeira razão pela qual as pessoas despertam em nós sentimentos negativos é que elas representam obstáculos potenciais à nossa liberdade). Ouço ele pensando em voz alta sobre como tudo aquilo era sem sentido, como se trocar os carros por bicicletas fosse realmente salvar o mundo. A medida que o tempo passa, a vontade de tomar uma atitude aumenta (ser um objeto é perturbador, porque, quando uma pessoa sabe que é uma coisa concreta, sua liberdade de ser ou fazer é limitada; e uma característica da consciência humana é resistir a qualquer tipo de confinamento não escolhido). O pensamento de passar com o carro por cima de todos, como uma bola de boliche faz com os pinos, aumenta (Convertemos as pessoas em objetos porque não experienciamos (nem poderíamos) sua mente, mas só conseguimos interagir com elas, basicamente, como objetos). Ao tomar a decisão, ele está absorvido pelos seus pensamentos e acredita veementemente que está certo nas suas ações (os outros roubam do indivíduo seu senso de primazia e controle. Como todos sabemos, as outras pessoas não são necessariamente o que queremos).

Quero acreditar que, quando o Sr. Reis percebeu que os pinos de boliche gritavam de dor, sangravam e choravam, ele tenha percebido que, se o inferno são os outros, ele assume seu papel de satanás (do hebraico, adversário).

6 comentários:

  1. Sintoma doloroso do que nos tornamos diariamente... Aceitamos propagandas que nos ensinam que o carro é sinônomo de poder, e não meio de locomoção. Fechados, sobre estofamentos confortáveis e em ambiente climatizado, consideramos que errados são os outros...
    Parabéns pela atitude! Apesar de tudo, movimentar a água para espalhar a sujeira decantada.

    Lembrei-me do oportuno título da obra de Thiago Mello: "Faz escuro, mas eu canto".
    beijo

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  2. Renato seja muito bem-vindo ao Maru. Estamos muito felizes com seu trabalho e empenho em despertar nos alunos uma conciência crítica sobre o que está a nossa volta.
    Parabéns!!!

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  3. Amanda e Alessandra, obrigado pelo tempo de vocês em ler e comentar. Em 2 meses de Marupiara, muitos sentimentos já despertaram em mim, menos o de solidão. Forte abraço

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  4. Grande Renato!

    Há momentos em que simplesmente ficamos sem palavras para expressar nossa indignação frente a algumas atitudes... Me pergunto o que representam estas atitudes ou a falta delas. Assim como você, fico triste e indignado, pois certamente tudo isto é mais um reflexo da intolerância humana. Intolerância que nós, como sociedade, construímos no dia-a-dia através da nossa falta de tempo e nossa ganância pelo dinheiro e poder. Onde está a alteridade? Até quando nos sentiremos estrangeiros com aqueles que nos são iguais, e alienígenas para uma geração que julgamos de jovens alienados? Onde está a sensibilidade e o Amor que equilibra a nossa razão? Estaríamos em busca da Equação da Vida?
    Meu irmão, tenho a certeza que este seu manifesto é justamente a representação da voz que clama no deserto da insensibilidade humana, e que nos traz o sentimento da real razão de sermos educadores neste tempo.
    Parabéns pela atitude, pelo manifesto e, principalmente, por você sempre propagar o nobre sentimento de solidariedade.

    Forte abraço!

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  5. Renato, quantos de nós ainda não saíram da caverna!

    É sombrio e triste, mas o [ser] "humano" ainda vive em torno de sombras, talvez e corriqueiramente, suas próprias sombras!!!

    Acredito que expor o que sentimos, é o primeiro passo para a transformação, como disse Antoine de Saint-Exupéry, "O essencial é invisível aos olhos..."

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  6. Inspirado e indignado , Renato!

    Estamos na era da hipocrisia e do cinismo, onde tudo pode ser justificado: assassinatos, estelionato...O mais leve é coagir ou impredir, seja lá de qualquer forma, um grupo unir-se para lutar ou seguir uma causa legítima, vemos isso no dia-a-dia. Ë triste que teremos mais alguns anos dessa convivência tóxica que a sociedade de consumo nos instituiu... Por isso mesmo deixarei de concluir, pois nâo se chega á uma conclusâo, razoável,quando nâo contamos com a razâo.

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